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sábado, 13 de fevereiro de 2010

Um tecer de imagens: espetáculo ‘Rosário’

" Boa Noite Todos! Eu tenho memória. Só vim agora porque foram me chamar"
(Canção de Guerreiro cantada por Mestra Margarida - CE)


O teatro como uma celebração do encontro do homem contemporâneo com sua ancestralidade. Assim, defino o espetáculo ‘Rosário’, interpretado e concebido pela atriz Felícia de Castro[1] com a direção de Demian Reis, que teve a sua estréia no último dia 20 de novembro no Teatro ICBA e ficará em cartaz até o dia 18 de dezembro.
O monólogo é fruto de uma pesquisa que se estendeu por cerca de 10 anos e que em 1h de duração, versa sobre a tradição da coroação dos reis negros presente nos congados mineiros, nas folias de reis e nas romarias da região do Cariri, numa perspectiva poética, feminina e religiosa. O espetáculo, está genuinamente inserido em uma pesquisa antropológica sobre o universo das matizes culturais brasileiras.
O espetáculo ‘Rosário’ possui uma dramaturgia marcada pela ruptura do tempo, espaço e da ação cênica, pela forte presença da musicalidade de foguetos populares e da pouca utilização do recurso da linguagem verbal, o que potencializa a lugar do corpo, como principal elemento desta encenação. Assim, “O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia pensada como veiculo de transmissão.” (GREINER, 2005, p.131). Assim, discursos poéticos emergem do corpomídia da atriz, que ao movimentar pelo espaço interagi com a luz, cenário, adereços e figurino, e que produz um fluxo contínuo de imagens, oriunda das interferências que o cercam.
Com uma proposta cênica ritualística, foi necessário apropriar-se do espaço cênico transformando o palco em uma arena (apesar da circularidade da encenação, o publico ficou localizado em apenas dois lugares, devido à própria estrutura do teatro), retiraram-se as cuxias, e não havia entradas e saídas de cena. Ao adentrar a sala de espetáculo, o público já encontrava a atriz em cena executando a sua ação cênica. Havia dois focos principais no círculo, um estava mais na direita fundo, onde ficavam cabaças e galhos de árvore, estando iluminado praticamente durante toda a encenação (com exceção nos momentos de black) e outro localizado na esquerda frente (próximo ao público) onde ocorria os momentos de clímax do espetáculo. O centro do círculo foi ainda muito utilizado, além do contorno feito de areia, que delimitava o espaço da encenação.
No que se refere ao equipamento utilizado pelo iluminador cito, refletor PC, refletor fresnel, refletor elipsoidal. A maior parte do espetáculo usa o refletor sem gelatina, apenas com difusor, mas há também a utilização de uma geral vermelha e outra azul, e focos azuis, sendo ainda produzida uma lavanda que é produzida pela mescla das gerais azul e vermelha. Duas características da proposta da iluminação deste espetáculo são predominantes: a utilização do recurso da penumbra e das sombras.
A proposta de utilizar a penumbra como efeito sinestésico, possibilitou que o elemento místico da peça se evidenciasse. Cito, portanto a cena no qual víamos a animalização da atriz que movimentava de maneira circular, contudo quando o atriz/boi se aproximava da platéia (rompendo o círculo de areia) era praticamente impossível a visibilidade daquela interação para a maioria do público. Para evidenciar outro procedimento dentro do mesmo espetáculo, pontuo a utilização da luz aberta/geral nos momentos em que a atriz canta e interagi com o público como brincante.
As sombras projetadas nas paredes foi outro elemento particular desta encenação, no qual na maioria das vezes podíamos identificar a presença de duas sombras duras, o que ampliava a percepção espacial e que recriava e dilatava o movimento corporal da atriz. Neste aspecto, identifico a presença da essência do mito da Caverna de Platão, sobre o pensar sobre a relação do homem e da sombra. Assim cito a cena da coroação no qual o que podemos visualizar é a coroação de uma sombra, por meio da sombra da coroa, constituindo uma cena de elevado grau simbólico e imagético. Em muitos momentos da peça vimos três pessoas em cena (atriz e duas sombras), tornando a encenação por vezes confusa, pela profusão de imagens, além de em alguns momentos fazer com que a atenção do público se voltasse para as sombras e não para a atriz em cena.
Ainda nos aspectos da relação da cena como espaço de construção de imagens, pontuo a presença dos adereços: bacia de alumínio e tecido branco e pela maneira pelo que eles foram ressignificados durante o espetáculo, a partir da interação da luz.
Para concluir, ressalvo que a leitura de imagens produzidas pelo ‘Rosário’ está implicada com as memórias e registros individuais de seu público, pois não é possível ver aquilo que não possuímos referências, o que pode tornar a encenação pouco precisa em seu processo de recepção. Contudo o corpo (do espectador) cria imagens através de sua relação com o objeto artístico. Assim, todos os indivíduos possuem imagens vivas em seus corpos e, por isso, que ele aguarda uma oportunidade para fazê-las emergir, e neste espetáculo o elemento místico potencializa essa reverberação de imagens.





BIBLIOGRAFIA
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.

[1] Felícia de Castro é atriz, pesquisadora e palhaça. Graduada em Artes Cênicas na UFBA. É co-fundadora do Grupo de Teatro Palhaços Para Sempre, que, desde 2000, pesquisa a arte do ator e tradições artísticas brasileiras.